quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Teoria Geral De Sistemas Parte 2

Por oposição, o mesmo estado final, a mesma “meta” pode ser alcançado partindo de diferentes condições iniciais e por diferentes trajetos nos processos organísmicos.

É evidente que muitas características dos sistemas organísmicos, freqüentemente consideradas vitalistas ou místicas, podem ser derivadas do conceito de sistema e das características de certos sistemas de equações um tanto gerais, em conexão com noções termodinâmicas e estatístico-mecânicas.

Se o organismo é um sistema aberto, os princípios que se aplicam geralmente aos sistemas desta espécie devem aplicar-se a ele de modo inteiramente independente da natureza das relações e processos, evidentemente de extrema complexidade, existentes entre os componentes.

Naturalmente uma consideração tão geral não dá explicação de fenômenos particulares da vida. Os princípios examinados forneceriam, contudo uma moldura geral ou esquema dentro do qual as teorias quantitativas de fenômenos especificamente vitais seriam possíveis. Portanto, as teorias dos fenômenos biológicos individuais deveriam revelar-se serem casos especiais de nossas equações gerais.

As grandes áreas do metabolismo, crescimento, excitação, etc, começam a difundir-se em um campo teórico integrado sob a direção do conceito de sistemas abertos. Pode-se também dizer que um grande número de problemas e de possíveis formulações quantitativo resulta deste conceito.

O estudo dos fenômenos organísmicos tendo por base a concepção exposta, da qual foram desenvolvidos alguns poucos princípios gerais, já demonstraram sua importância na explicação de fenômenos específicos da vida.

6 – O Modelo Do Sistema Aberto.

Qual a diferença entre um organismo normal, um organismo doente e um morto? As leis da física não dizem qual a diferença, mas estão interessados nos fatos dos cachorros estarem vivos ou mortos. O processo hormonal é determinado por leis físicas e químicas, nenhum é melhor, mais sadio ou mais normal que o outro.

Contudo, há uma diferença fundamental entre um organismo vivo e um morto. Habitualmente não temos nenhuma dificuldade em distinguir entre um organismo vivo e um objeto morto. Em um ser vivo, inúmeros processos químicos e físicos acham-se “ordenados” de tal modo que permitem ao sistema vivo perdurar, crescer, etc.

O organismo é uma máquina quimiodinâmica, que transforma diretamente a energia do combustível em trabalho efetivo, fato em que, por exemplo, se baseia a teoria da ação muscular. O organismo tornou-se uma máquina cibernética, capaz de explicar muitos fenômenos homeostáticos e de tipos afins. A criação mais recente é a que foi feita em termos de máquinas moleculares.

O modelo do organismo como máquina tem seus sucessos, mas também tem suas dificuldades e limitações, tais como o problema da origem da máquina, o problema da regulação e a contínua troca de componentes.

O sistema aberto define-se como um sistema em troca de matéria com seu ambiente, apresentando importação e exportação, construção e demolição dos materiais que o compõem. Essa teoria é relativamente nova e deixa muitos problemas sem solução. O desenvolvimento da teoria cinética dos sistemas abertos deriva de duas fontes: primeiramente a biofísica do organismo vivo, e secundariamente a evolução da química industrial, que, além das reações em recipientes fechados ou dos processos de fornada, usa de modo crescente sistemas de reações contínuas devido à sua maior eficácia e outras vantagens. A teoria termodinâmica dos sistemas abertos é a chamada termodinâmica irreversível, que se tornou uma importante generalização da teoria física pelo trabalho de alguns cientistas.

Em certas condições os sistemas abertos aproximam-se de um estado independente de tempo, o chamado estado estável. Este estado mantém-se à distância do verdadeiro equilíbrio e, portanto é capaz de produzir trabalho, como se dá no caso dos sistemas vivos, por oposição aos sistemas em equilíbrio. O sistema permanece constante em sua composição, a despeito de contínuos processos irreversíveis, importação e exportação, construção e demolição, estarem em ação. O estado estável mostra características regulatórias notáveis, que se tornam evidentes particularmente em sua equifinalidade. Se um estado for alcançado por um sistema aberto, é independente das condições iniciais e determinado somente pelos parâmetros do sistema, isto é, pelas velocidades de reação e transporte. É isto que se chama equifinalidade, encontrado em muitos processos organísmicos. Por oposição aos sistemas físico-químicos fechados, o mesmo estado final pode ser atingido equifinalmente partindo de diferentes condições iniciais e depois de perturbações de processo. Além disso, o estado de equilíbrio químico é independente dos catalisadores que aceleramos processos. O estado estável, ao contrário, depende dos catalisadores presentes e de suas constantes de reação.

Do ponto de vista da termodinâmica, os sistemas abertos podem conservar-se em um estado de alta improbabilidade estatística de ordem e organização.

A tendência geral dos processos físicos segue o rumo da entropia crescente, isto é, estados de probabilidade crescente e ordem decrescente. Os sistemas vivos mantêm-se em um estado de alta ordem e improbabilidade, podendo mesmo evoluir no sentido a crescente diferenciação e organização, conforme se verifica no desenvolvimento organísmico e na evolução.

Os sistemas abertos comparados aos sistemas fechados convencionais apresentam características que parecem contradizer as leis físicas comuns, sendo muitas vezes consideradas características vitalistas da vida, isto é, violações das leis físicas, somente explicáveis pela introdução de fatores anímicos ou entelequias no curso dos acontecimentos orgânicos.

Depois da exploração dos caminhos das reações metabólicas individuais, em bioquímica, tornou-se agora uma importante tarefa compreender os sistemas metabólicos integrados como unidades funcionais. O caminho atravessa a química física das reações enzimáticas aplicadas a sistemas abertos. A complexa rede e a interação de grande número de reações foi esclarecida em funções tais como a fotossíntese, a respiração e a glicólise, sendo a última investigada por um modelo processado em computador, com cerca de cem equações diferenciais não lineares. De um ponto de vista mais geral, começamos a compreender que, além da organização morfológica visível, observada pelo microscópio eletrônico, pelo microscópio luminoso e macroscopicamente, há uma outra organização visível, que resulta da interação de processos determinada pelas velocidades de reação e transporte e defendendo-se contra as perturbações do meio.

Outro campo de investigação é o transporte ativo nos processos celulares de importação e exportação, na função renal, etc. Isto se liga aos potenciais bioelétricos. Só podem ser tratados estes problemas mediante a aplicação da termodinâmica irreversível.

No organismo, o protótipo do sistema aberto é o sangue, com seus vários níveis de concentrações mantidos constantes. As concentrações e a retirada dos metabolismos e das substâncias de prova administradas seguem a cinética dos sistemas abertos.

Portanto, estes exemplos bastam para indicar brevemente os grandes campos de aplicação do modelo do sistema aberto. Há anos atrás foi indicado que as características fundamentais da vida, metabolismo, crescimento, desenvolvimento, auto-regulação, resposta a estímulos, atividade espontânea, etc., podem ser consideradas em última análise conseqüências do fato do organismo ser um sistema aberto. A teoria desses sistemas seria, portanto um princípio unificador capaz de combinar fenômenos diversos e heterogêneos debaixo do mesmo conceito geral e de dar origem a leis quantitativas.

Atrás desses fatos pode-se traçar um esboço de uma generalização ainda mais ampla. A teoria dos sistemas abertos é parte de uma teoria geral dos sistemas. Esta doutrina refere-se a princípios que se aplicam aos sistemas em geral, qualquer que seja a natureza de seus componentes e das forças que os governam. Na teoria geral dos sistemas alcançamos um nível onde não se falam mais de entidades físicas e químicas, mas se discutem totalidades de natureza completamente geral. Contudo, certos princípios dos sistemas abertos continuam sendo verdadeiros e podem ser aplicados com êxito a campos mais amplos da ecologia, que estuda a competição e o equilíbrio entre as espécies, à economia humana e outros campos sociológicos.

A base do modelo do sistema aberto é a interação dinâmica de seus componentes. A base do modelo cibernético é o ciclo de retroação no qual, por via de retroação da informação mantém-se um valor desejado, atinge-se um alvo, etc. A teoria dos sistemas abertos é uma cinética e uma termodinâmica generalizadas. A teoria cibernética baseia-se na retroação e na informação. Os dois modelos foram aplicados com êxito em seus respectivos campos. No entanto, devemos ter a noção de suas diferenças e limitações.

O modelo do sistema aberto na formulação cinética e termodinâmica não fala de informação. Por outro lado um sistema de retroação do ponto de vista termodinâmico e cinético é fechado, não possuindo nenhum metabolismo.

O modelo de retroação aplica-se eminentemente as regulações “secundárias”, isto é, regulações baseadas em arranjos estruturais no sentido amplo da palavra. Como, porém as estruturas do organismo são mantidas em metabolismo e troca de componentes, as regulações “primárias” devem evoluir na dinâmica num sistema aberto. O organismo torna-se crescentemente “mecanizado” no curso do desenvolvimento, e por isso é que as regulações posteriores correspondem particularmente a mecanismos de retroação.

7 – Alguns Aspectos Da Teoria Dos Sistemas Em Biologia.

De acordo com uma opinião bem difundida, existe uma distinção fundamental entre “fatos observados” de um lado, e por outro a “mera teoria’, produto da especulação mais ou menos suspeito. Quando tomamos dados supostamente simples em nosso campo, levaria horas revelar a enorme quantidade de suposições teóricas necessárias para formar esses conceitos, dispor os convenientes projetos experimentais, criar as máquinas que executam a tarefa, e tudo isto está implicado nos dados supostamente brutos da observação. Depois de ter obtido uma série destes valores, a coisa mais” empírica “que se tem a fazer é apresenta-los em uma tabela de valores médios e desvios padrões”. Isto pressupõe o modelo da distribuição binomial e igualmente a teoria inteira da probabilidade, problema profundo e em grande parte não resolvido da matemática, da filosofia e mesmo da metafísica. Se tivermos sorte os dados podem ser marcados de maneira simples, obtendo-se o gráfico de uma linha reta. Mas, considerando-se a inconcebível complexidade de processos que se passam mesmo numa simples célula, é pouco menos que um milagre o fato do mais simples modelo possível aplicar-se realmente a um certo número de casos.

Assim, mesmo os fatos de observação supostamente não adulterados estão já misturados a toda sorte de imagens conceituais, conceitos e modelos, teorias ou quaisquer outras expressões que escolhamos. A escolha não consiste em saber se devemos nos manter no campo dos dados ou fazer teorias, mas consistem entre modelos mais ou menos abstratos, generalizados, mais ou menos afastados da observação direta, mais ou menos convenientes para representar os fenômenos observados.

São citados quatro modelos fundamentais no campo do metabolismo quantitativo. São eles:

  • Sistemas abertos e estados estáveis;
  • Retroação e homeostase;
  • Alometria e regra da superfície;
  • Teoria do crescimento animal.

Os modelos do sistema aberto e da retroação aplicam-se a uma ampla gama de fenômenos em fisiologia e representam expansões essenciais da teoria física. As duas concepções devem ser claramente distinguidas; o modelo de retroação não deveria ser considerado uma cobertura para a regulação fisiológica em geral ou identificado com a “teoria dos sistemas”.

A equação alométrica representa a relação mais simples possível entre o tamanho do corpo e os processos metabólicos. Tem larga aplicabilidade e exprime a harmonização de processos nos sistemas vivos. Contudo, não existe “lei de superfície” ou “lei da potência ¾” ou “lei da redução progressiva das taxas metabólicas”. A relação alométrica varia enormemente nos fenômenos fisiológicos.

As variações da relação entre o tamanho do corpo e a taxa metabólica podem ter lugar:

a) em diferentes tecidos ou em diferentes espécies;

b) em conseqüência de alterações das condições fisiológicas;

c) devido a diferentes dispositivos experimentais.

Entre as condições que alteram esta relação contam-se fatores como atividades fisiológicas, o sexo, a estação, a prévia aclimação, etc.

A dependência do metabolismo total em relação ao tamanho nos mamíferos é diferente em condições basais, em um ambiente que não esteja em estado térmico neutro e em condições de atividade muscular. As variações seguem a regra de Locker, isto é, com o aumento absoluto da taxa metabólica, a regressão com relação ao tamanho do corpo tende a diminuir.

As equações de crescimento estabelecidas por Bertalanffy representam um modelo altamente simplificado, que no entanto abrange muitos fenômenos e regularidades encontradas na fisiologia do metabolismo e do crescimento. Os parâmetros que aparecem nessas equações foram em muitos casos verificados por experiências fisiológicas.

Tendo em vista as variações da relação tamanho-metabolismo, os chamados tipos metabólicos e tipos de crescimento de Bertalanffy deveriam ser considerados casos ideais, realizáveis em certas condições padronizadas, mais do que características invariáveis das espécies ou grupos de espécies em questão.

Parece haver correspondência entre as variações sazonais das taxas metabólicas e das taxas de crescimento.

8 – O Conceito De Sistema Nas Ciências Do Homem.

Considerada à luz da história, nossa tecnologia e mesmo nossa sociedade baseiam-se em uma imagem fisicalista do mundo. A física é ainda o paradigma da ciência, a base de nossa idéia da sociedade e de nossa imagem do homem.

Novas ciências surgiram, as ciências da vida, do comportamento e da sociedade. Exigem o lugar que lhes compete em uma moderna concepção do mundo e seriam capazes de contribuir para uma reorientação fundamental. Menos destacada do que as revoluções contemporâneas na tecnologia mas igualmente prenhe de possibilidades futuras, é uma revolução baseada nos modernos progressos das ciências biológicas e do comportamento. Pode ser chamada de a Revolução Organísmica. Seu núcleo é a noção de sistema, aparentemente um conceito pálido, abstrato e vazio, que entretanto é repleto de um significado oculto, de possibilidades de fermentação e explosão.

O alcance desta concepção pode ser resumido em uma curta proposição. O século XIX e a primeira metade do século XX concebiam o mundo como um caos. O caos era o jogo cego dos átomos, freqüentemente citado, que, na filosofia mecanicista e positivista, parecia representar a realidade última, sendo a vida um produto acidental de processos físicos e o espírito um epifenômeno. Era o caos quando, conforme a teoria corrente da evolução, o mundo vivo apareceu como um produto do acaso, resultado de mutações casuais e da sobrevivência, no moinho da seleção natural. No mesmo sentido, a personalidade humana nas teorias do behaviorismo e da psicanálise era considerada um produto casual da natureza e da educação, de uma mistura de genes e de uma seqüência acidental de acontecimentos, desde a primeira infância à maturidade.

Procura-se agora uma outra concepção básica do mundo, o mundo como organização. Esta concepção alteraria de fato as categorias básicas das quais repousa o pensamento científico e influenciaria profundamente as atitudes práticas.

Esta tendência é marcada pela emergência de um feixe de novas disciplinas, tais como a cibernética, a teoria da informação, a teoria geral dos sistemas, as teorias dos jogos, das decisões, das filas e outras. Na aplicação prática é marcadas pela análise dos sistemas, engenharia dos sistemas, pesquisa de operações, etc. São diferentes nas premissas básicas, nas técnicas matemáticas e nos propósitos, sendo freqüentemente insatisfatórias e ás vezes contraditórias. Concordam porém em tratarem de uma maneira ou de outra, de sistemas, totalidades ou organização e todas elas anunciam uma nova abordagem.

Em que podem esses progressos contribuir para as Ciências do Homem? Parece uma mixórdia de teorias contraditórias que vão do behaviorismo, para a qual não há diferença entre o comportamento humano e o dos ratos no laboratório, ao existencialismo, para a qual a situação humana está além da compreensão científica. Esta variedade de concepções e enfoques seria de todo salutar se não fosse um fato perturbador. Todas estas teorias têm em comum uma “imagem do homem” que se origina no universo físico-tecnológico, a qual é aceita sem discussão por teorias do universo em outros aspectos antagônicos. Este é o modelo robô do comportamento humano.

Um conceito capital é o de esquema estímulo-resposta. Considera-se que o comportamento, humano ou animal, é uma resposta a estímulos provenientes do exterior. Em parte o estímulo-resposta baseia-se em mecanismos nervosos herdados, como no comportamento reflexo e instintivo. As partes mais importantes no que respeita ao comportamento humano, são as respostas adquiridas ou condicionadas. Estas podem ser o condicionamento clássico por meio da repetição da seqüência de estímulos condicionais e incondicionais. Pode ser o condicionamento operante por reforço de respostas bem sucedidas. Ou também pode ser a primitiva experiência infantil. Isto por conseguinte domina a engenharia psicológica.

A questão é que as regras descobertas pelos teóricos da aprendizagem em experiências animais são consideradas capazes de abranger a totalidade do comportamento humano.

O princípio do ambientalismo diz que o comportamento e a personalidade são formados por influências externas. Esse princípio também diz que a psicanálise sustenta quando diz que a personalidade é formada pela primitiva experiência infantil, especialmente de natureza sexual.

O princípio do equilíbrio ou princípio da estabilidade diz que a função primordial do aparelho mental consiste em manter o equilíbrio homeostático. O comportamento consiste essencialmente na redução das tensões, particularmente as de natureza sexual.

O comportamento é governado também pelo princípio da economia. É utilitário e deveria ser executado de modo mais econômico, isto é, com o mínimo de despesa mental ou vital.

As teorias do conhecimento e da aprendizagem descrevem corretamente uma importante parte ou aspecto do comportamento humano, mas tomadas como teorias que “não são senão isto” tornam-se evidentemente falsas e se destroem a si mesmas em sua aplicação. A imagem do homem como robô é metafísica ou mito e sua força de persuasão repousa unicamente no fato de corresponder tão estreitamente à mitologia da sociedade de massa, à glorificação da máquina e ao lucro como único motor do progresso.

O princípio do stress, tão freqüentemente invocado em psicologia, psiquiatria e psicossomática, exige reavaliação. Como tudo no mundo, o stress é uma coisa ambivalente. O stress não é somente um perigo para a vida, que deve ser controlado e neutralizado por mecanismos adaptativos, mas é também criação de uma vida superior.

O segredo da saúde e da felicidade consiste na adaptação bem sucedida às condições sempre variáveis do mundo. As penalidades pelo fracasso neste grande processo de adaptação são a doença e a infelicidade.

A vida não é confortável instalação em sulcos pré-ordenados do ser. Em sua forma mais perfeita é élan vital, inexoravelmente impelida para uma forma superior de existência. Sem dúvida isto é metafísico e uma imagem poética. Mas o mesmo se dá, afinal de contas, com qualquer imagem que procuremos fazer das forças impulsionadoras do universo.

O novo modelo ou imagem do homem que parece estar imergindo é caracterizado resumidamente como o modelo do homem enquanto o sistema de personalidade ativa.

A tendência geral da psicologia costumava ser a redução dos fatos mentais e do comportamento a um feixe de sensações, impulsos, reações inatas e aprendidas ou qualquer espécie de elementos últimos que fossem teoricamente pressupostos. Por oposição, o conceito de sistema procura colocar um foco no interesse científico o organismo psicofisiológico como totalidade.

Por oposição ao modelo reagente expresso pelo sistema E-R, começa-se a considerar o organismo psicofísico como um sistema primordialmente ativo.

Este conceito aplica-se não somente aos aspectos do comportamento mas também aos do conhecimento. O homem não é um recebedor passivo de estímulos provenientes do mundo exterior mas em sentido muito concreto cria seu universo.

Esta nova imagem do homem, substituindo o conceito de robô pelo de sistema, acentuando a atividade imanente em lugar da reatividade dirigida para o exterior, e reconhecendo a especificidade da cultura humana comparada ao comportamento animal deve levar a uma fundamental reavaliação dos problemas na educação, do treinamento, da psicoterapia e das atividades humanas em geral.

Considerando-se a ciência social em sentido amplo, incluindo a sociologia, economia, ciência política, psicologia social, antropologia cultural, lingüística, boa parte da história e humanidades, etc., deve-se entender a ciência como um esforço nomotético, isto é, não uma descrição de singularidades mas a ordenação dos fatos e a elaboração de generalidades.

A pesquisa dos sistemas de organismos é extensa. Forma uma parte importante da biologia, do estudo da comunidade e sociedades de animais e plantas com seu crescimento, competição, luta pela existência, etc., tanto os aspectos ecológicos quanto nos genéticos.

A sociologia, com seus campos afins, é essencialmente o estudo de grupos ou sistemas humanos. As múltiplas tentativas de fornecer formulações teóricas são todas elaborações do conceito de sistema ou algum sinônimo deste domínio.

Os conceitos de teorias fornecidos pelo enfoque moderno dos sistemas estão sendo progressivamente introduzidos na sociologia. A atual teoria sociológica consiste em grande parte nas tentativas de definir o sistema sociocultural e no estudo do funcionalismo, isto é, o exame dos fenômenos sociais com relação à totalidade a que servem.

Ao contrário das espécies biológicas que evoluíram mediante a transformação genética, somente a humanidade apresenta o fenômeno da história, que se liga intimamente à cultura, à linguagem e à tradição. O reinado da natureza é dominado por leis progressivamente reveladas pela ciência.

A ciência é essencialmente um empreendimento nomotético, isto é, estabelece leis baseadas no fato dos acontecimentos na natureza serem repetíveis e recorrentes. Por oposição, a história não se repete. Portanto, a história é ideográfica, isto é, uma descrição de acontecimentos que ocorreram no passado próximo ou distante.

O enfoque científico é indiscutivelmente aplicável a certos aspectos da sociedade humana. Um destes campos é a estatística. Pode-se formular muitas leis estatísticas ou pelo menos regularidades relativas às entidades sociais. As estatísticas demográficas, as estatísticas de mortalidade, as sondagens de opinião, as previsões do comportamento dos votantes ou da venda de um produto mostram que os métodos estatísticos são aplicáveis a uma larga escala de fenômenos sociais.

Mesmo para estas entidades misteriosas chamadas valores humanos, estão começando a aparecer teorias cientificas.

É evidente que, mesmo as Grandes Teorias são modelos imperfeitos. Erros de fato, interpretações incorretas, falácias nas conclusões tem sido mostradas em uma enorme literatura crítica. Mas mesmo admitindo críticas, permanecem ainda uns certos números de observações.

Uma coisa que os vários sistemas da “história teórica” parecem ter demonstrado é a natureza do processo histórico. A história não é um processo que se passa numa humanidade amorfa ou no Homo sapiens como espécie zoológica. Ao contrário, é suportada por entidades ou grandes sistemas chamadas altas culturas ou civilizações. O número destas é incerto, suas delimitações são vagas e complexas suas interações.

9 – A Teoria Geral Dos Sistemas Em Psicologia E Psiquiatria.

Nos últimos anos o conceito de “sistema” vem adquirindo crescente influência em psicologia e psicopatologia. Numerosas pesquisas referem-se à teoria geral dos sistemas ou alguma parte dela.

A psicologia americana na primeira metade do século XX era dominada pelo conceito do organismo reagente, ou, mais dramaticamente, pelo modelo do homem como robô. Esta concepção era comum a todas as grandes escolas da psicologia americana, a psicologia clássica e o neobehaviorismo, as teorias da aprendizagem e da motivação, a psicanálise, a cibernética, o conceito de cérebro como computador e assim por diante. Conforme disse um dos principais teóricos, O homem é um computador, um animal ou uma criança. Seu destino está completamente determinado pelos genes, instintos, acidentes, condicionamentos e reforços primitivos, forças culturais e sociais. O amor é um impulso secundário baseado na fome e nas sensações orais ou uma formação de uma reação a um ódio inato subjacente. Na maioria de nossas formulações perscnológicas não há condições para a criatividade, não há margens aceitas de liberdade para voluntárias, nem adequado reconhecimento do poder dos ideais, nem base para ações altruístas, nem há absolutamente fundamento para qualquer esperança de que a raça humana possa salvar-se da fatalidade com que agora se defronta. Se nós, psicólogos, estivermos sempre, consciente ou inconscientemente, tentando por malícia reduzir o conceito da natureza humana a seu mais baixo denominador comum e nos vangloriamos de nosso sucesso nesse modo de proceder, então teremos de admitir que nessa medida o espírito satânico está vivo dentro de nós.

Os dogmas da psicologia dos robôs foram extensamente criticados. A teoria contudo permaneceu dominante por motivos óbvios. O conceito de homem como robô era tanto uma expressão quanto uma poderosa força motora de uma sociedade de massa industrializada. Era à base da engenharia do comportamento na publicidade e propaganda comercial, econômica e política. A economia em expansão da “sociedade da abundância” não poderia subsistir sem esta manipulação. Só manipulando os seres humanos cada vez mais.

A sociedade moderna ministrou uma experiência em grande escala de psicologia manipuladora. Se seus princípios são corretos, as condições de tensão e stress conduziriam ao aumento das perturbações mentais. Por outro lado, a saúde mental seria melhorada quando as necessidades básicas fossem satisfeitas, quando a repressão dos instintos infantis fosse evitada pelo livre treinamento das funções corporais, quando as exigências escolares fossem reduzidas a ponto de não sobrecarregarem um tenro espírito, quando a satisfação sexual fosse fornecida numa idade precoce, e assim por diante.

A experiência behaviorista conduziu a resultados contrários a perspectiva. A segunda guerra mundial não produziu aumento das perturbações neuróticas ou psicóticas, excetuados os efeitos de choque diretos, tais como as neuroses de combate. Em contraposição, a sociedade da abundância produziu um número sem precedente de indivíduos mentalmente doentes. Foi precisamente em condições de redução das tensões e de satisfação das necessidades biológicas que apareceram novas formas de perturbação mental, isto é, formas de disfunção mental que se originam não de impulsos reprimidos, de necessidades insatisfeitas ou de stress mas da falta de significado da vida. Suspeita-se que o recente aumento da esquizofrenia pode ser causado pela “dependência do outro” em que vive o homem na sociedade moderna e não há dúvida que no campo das desordens do caráter, apareceu um novo tipo de delinqüência juvenil, não o crime por desejo ou paixão mas por brincadeira, para “obter uma excitação” e resultante da vacuidade da vida.

Assim a psicologia teórica quanto à aplicada foi conduzida a uma situação de mal-estar com relação a seus princípios básicos.

A razão do presente interesse na teoria geral dos sistemas parece ser portanto esperar-se que esta concepção possa contribuir para uma estrutura conceitual mais adequada à psicologia normal e patológica.

Ao contrário das forças físicas como a gravidade ou a eletricidade, os fenômenos da vida são encontrados somente em entidades individuais chamadas organismos. Qualquer organismo é um sistema, isto é, uma ordem dinâmica de partes e processos em mútua interação. Igualmente, os fenômenos psicológicos só se encontram em entidades individuais, que no homem são chamadas personalidades.

“Mesmo sem estímulos externos o organismo não é um sistema passivo intrinsecamente ativo. A teoria do reflexo supôs que o elemento primário do comportamento é a resposta aos estímulos externos. Por oposição, a pesquisa recente mostra com crescente clareza que a atividade autônoma do sistema nervoso, repousando no próprio sistema, deve ser considerada primária. Na evolução e no desenvolvimento, os mecanismos reagentes parecem superpor-se às atividades primitivas, de locomoção rítmica. O estímulo não causa um processo em um sistema de outro modo inerte, mas apenas modifica processos em um sistema autonomamente ativo”. (Bertalanffy, 1937, p. 133ss).

O organismo vivo mantém um desequilíbrio chamado estado estável de um sistema aberto e assim é capaz de dispensar potenciais existentes ou tensões na atividade espontânea ou em resposta a estímulos liberadores.

A atividade autônoma é a forma mais primitiva do comportamento. Encontra-se na função cerebral e nos processos psicológicos. A descoberta de sistemas ativadores no tronco cerebral acentuou este fato nos últimos anos. O comportamento natural abrange inúmeras atividades além do esquema E-R, desde a exploração, o jogo e os rituais nos animais até os objetivos econômicos, intelectuais, estéticos, etc. para a auto-realização e a criatividade no homem. Toda a espécie do comportamento realiza-se por sua própria conta, tirando satisfação do próprio desempenho.

Um sintoma de doença mental é a danificação da espontaneidade. O paciente torna-se cada vez mais um autômato ou uma máquina E-R, impelido por impulsos biológicos, atormentados por necessidades de alimento, eliminação, satisfação sexual, etc. O modelo do organismo passivo é uma descrição muito adequada do comportamento estereotipado dos impulsivos, dos doentes com lesões cerebrais e do declínio da atividade autônoma na catatonia e formas correlatas psicopatológicas. Além disso, estes fatos evidenciam que o comportamento normal é diferente.

A diferenciação é a transformação de uma condição mais geral e homogênea que passa a outra mais especial e heterogênea. Sempre há um desenvolvimento, este caminha de um estado de relativa globalidade e falta de diferenciação para um estado de crescente diferenciação, articulação e ordem hierárquica.

O princípio da diferenciação é encontrado por toda parte em biologia, na evolução e no desenvolvimento do sistema nervoso, comportamento, psicologia e cultura. As funções gerais geralmente progridem de um estado sincrético, no qual as percepções, motivações, sentimentos, etc. acham-se numa unidade amorfa, para uma distinção cada vez mais clara destas funções. Na percepção o primitivo estado parece ter sido um estado de sinestesia, a partir do qual vão se separando as experiências visuais, auditivas, táteis, químicas e outras. No comportamento animal e em boa parte do comportamento humano há uma unidade perceptivo-emotivo-motivadora.

Os organismos não são máquinas, mas podem até certo ponto tornarem-se máquinas, solidificarem-se em máquinas, nunca porém completamente porque um organismo inteiramente mecanizado seria incapaz de reagir às condições incessantemente variáveis do mundo exterior. O princípio de mecanização progressiva exprime a transição da totalidade indiferenciada para a função superior, que se torna possível pela especialização e divisão do trabalho. Este princípio implica também perda de potencialidades nos componentes e de regulabilidade no todo.

A mecanização conduz freqüentemente ao estabelecimento de partes dirigentes, isto é, componentes que dominam o comportamento do sistema. Estes centros podem exercer “efeitos de gatilho”, isto é, opondo-se ao principio causa aequat effectum, uma pequena alteração de uma parte dirigente pode, em virtude de mecanismos de amplificação, causar grandes transformações no sistema total. Desta maneira, pode estabelecer-se uma ordem hierárquica de partes ou processos.

Diz-se às vezes que o estado psicótico é uma “regressão a formas mais antigas e mais infantis de comportamento.” A regressão é essencialmente a desintegração da personalidade, isto é, desdiferenciação e descentralização. A desdiferenciação significa que não há perda de funções merísticas, mas o reaparecimento de estados primitivos. A descentralização é, no caso extremo, a desencefalização funcional no esquizofrênico.

Qualquer sistema enquanto entidade que pode ser estudada em si mesma deve ter limites, quer espaciais quer dinâmicos. As fronteiras espaciais só existem na observação ingênua, pois todas as fronteiras são, em última análise, dinâmicas.

Em psicologia, a fronteira do ego é ao mesmo tempo fundamental e precária. Estabelece-se lentamente na evolução e no desenvolvimento, nunca estado completamente fixado. Origina-se na experiência proprioceptiva e na imagem do corpo, mas a auto-identidade não está completamente estabelecida antes que o “eu”, “tu”, e “ele” sejam denominados. A psicopatologia mostra o paradoxo da fronteira do ego ser simultaneamente demasiado fluída e demasiado rígida.

Excetuando a satisfação das necessidades biológicas, o homem vive em um mundo não de coisas mas de símbolos. Podemos também dizer que os vários universos simbólicos, materiais e não materiais, que distinguem as culturas humanas das sociedades animais são uma parte, e é fácil de ver a parte mais importante, do sistema de comportamento do homem. Pode-se, com razão, pôr em dúvida se o homem é um animal racional, mas certamente é de todo um ser criador e dominador de símbolos.

O simbolismo é reconhecido como o único critério do homem por biologistas, fisiologistas da escola pavloviana, psiquiatras e filósofos. Não é encontrado, mesmo nos principais manuais de psicologia, em conseqüência da predominância da filosofia do robô. Mas é precisamente por causa das funções simbólicas que os motivos nos animais não serão um modelo adequado dos motivos do homem, e que a personalidade humana não se completa na idade de três anos ou pouco mais, conforme julgava a teoria de instinto estabelecida por Sigmund Freud.

Provavelmente todas as noções usadas para caracterizar o comportamento humano são conseqüências ou aspectos diversos da atividade simbólica.

A doença mental é essencialmente uma perturbação das funções sistêmicas do organismo psicofísico. É por esta razão que os sintomas ou síndromes isolados não definem a entidade mórbida.

Os distúrbios psiquiátricos podem ser nitidamente definidos em termos de funções de sistemas. Com relação ao conhecimento, os mundos dos psicóticos, impressionantemente descritos por escritores das escolas fenomenológica e existencialista, são “produtos de seus cérebros”. Mas também nosso mundo normal é configurado por fatores emocionais, motivacionais, sociais, culturais, etc., amalgamados com a adequada percepção. As ilusões e os delírios, as alucinações, pelo menos em sonhos, estão presentes no indivíduo sadio.

O conceito de espontaneidade traça a linha fronteiriça. A motivação normal implica atividade autônoma, integração do comportamento, plasticidade e adaptabilidade a situações variáveis, livre uso da antecipação simbólica, decisão, etc. Isto acentua a hierarquia das funções, mostrando especialmente que o nível simbólico se superpõe ao organísmico. Por conseguinte, além do princípio organísmico da atividade espontânea o princípio humanista das funções simbólicas é fundamental na consideração da teoria de sistemas.

Portanto, a resposta à questão de saber se o indivíduo é mentalmente são ou não, é determinada em última análise pelo fato de ter ele um universo integrado consistente dentro da estrutura cultural dada.

10 – A Relatividade Das Categorias.

Entre os recentes adiantamentos nas ciências antropológicas poucos despertaram tanta atenção e levaram a tantas controvérsias quanto às concepções expostas pelo falecido Benjamin Whorf. A hipótese proposta por Whorf é:

“Que a crença habitualmente admitida de que os processos cognoscitivos de todos os seres humanos possuem uma estrutura lógica comum que opera anteriormente à comunicação pela linguagem e independentemente desta é errônea”.

A concepção de Whorf é que os padrões lingüísticos determinam aquilo que o indivíduo percebe neste mundo e o modo como pensa a respeito do que percebe. Como estes padrões variam largamente, os modos de pensar e de perceber em grupos que utilizam diferentes sistemas lingüísticos darão em resultado concepções do mundo fundamentalmente diferentes.

Somos assim conduzidos a um novo princípio de relatividade, segundo o qual todos os observadores não são levados pela mesma evidência física à mesma imagem do universo, a não ser que sua formação lingüística seja semelhante... Recortamos e organizamos a difusão e o fluxo dos acontecimentos da forma em que fazemos em grande parte porque, devido à influência de nossa língua materna, participamos de um acordo para proceder desta maneira, e não porque a própria natureza seja segmentada exatamente dessa maneira para todos a verem.”

O modo de pensar mecanicistamente articulado, que entra em dificuldade com as modernas criações científicas, é conseqüência de nossas categorias e hábitos lingüísticos específicos. Whorf espera que a compreensão da diversidade dos sistemas lingüísticos venha a contribuir para a reavaliação dos conceitos científicos.

As categorias do conhecimento, tanto do conhecimento cotidiano quanto do conhecimento científico, que em última estância é apenas um requinte do anterior, dependem primeiro de fatores biológicos, e segundo de fatores culturais. Em terceiro lugar, apesar deste emaranhamento demasiado humano, o conhecimento absoluto, emancipado das limitações humanas, em certo sentido é possível.

O conhecimento depende primeiramente da organização psicofísica do homem. Podemos referir-nos aqui em particular ao enfoque da biologia moderna inaugurada por Jacob von Uexküll sob o nome de Umwelt-Lehre. Consiste essencialmente em afirmar que cada organismo vivo corta uma fatia do grande bolo da realidade que lhe é possível perceber e à qual pode reagir devido à sua organização psicofísica, isto é, a estrutura dos órgãos receptores e efetuadores.

O plano de organização e funcionamento de um ser vivo determina aquilo que pode se tornar “estímulo” e “característica” a que o organismo responde mediante uma certa reação.

Tendo indicado a relatividade biológica e cultural da experiência e do conhecimento, podemos, de outro lado, indicar também os limites desta relatividade, chegando assim ao terceiro tópico enunciado a princípio.

O relativismo tem sido muitas vezes formulado de modo a exprimir o caráter puramente convencional e utilitário do conhecimento com o substrato emocional de sua definitiva futilidade. Pode-se ver facilmente que esta conseqüência não é necessária.

O mundo da experiência e do conhecimento humanos é um dentre os inumeráveis ambientes dos organismos, que nada tem de singular quando comparado ao do ouriço do mar, da mosca ou do cachorro. Mesmo o mundo da física, dos elétrons e átomos às galáxias, é um produto puramente humano, dependente da organização psicofísica da espécie humana.

No que diz respeito à experiência direta, as categorias da percepção, determinadas pela organização biofisiológica da espécie em questão, não podem ser completamente “erradas”, fortuitas e arbitrárias. Ao contrário, devem de certa maneira e até certo ponto corresponder à “realidade”, seja lá o que for esta expressão signifique em sentido metafísico. Pelo contrário, o organismo é um reagente e ator do drama. O organismo tem de reagir a estímulos provenientes do exterior, de acordo com seu equipamento psicofísico inato. Há amplitude naquilo que é apanhado como estímulo, sinal e característica. Contudo, a percepção deve permitir ao animal descobrir seu caminho no mundo. Isto seria impossível se as categorias da experiência, o espaço, o tempo, substância, causalidade fossem inteiramente enganadoras. As categorias da experiência surgiram na evolução biológica e têm continuamente de se justificar na luta pela existência. Se não correspondessem de certo modo à realidade, seria impossível a reação adequada e esse organismo estaria rapidamente eliminado pela seleção.

A maneira convincente que as formas a priori da experiência têm essencialmente a mesma natureza que os esquemas inatos do comportamento instintivo, segundo o qual os animais respondem aos companheiros, aos parceiros sexuais, descendentes ou pais, presas ou predadores e outras situações exteriores. Baseia-se em mecanismos psicofisiológicos, tal como ocorre na percepção do espaço que é baseado na visão binocular, na paralaxe, na contração do músculo ciliar, no aumento ou diminuição aparente de tamanho de um objeto que se aproxima ou se afasta, etc. As formas a priori da intuição e as categorias são funções orgânicas, baseadas em estruturas corpóreas, e mesmo análoga às das máquinas, dos órgãos dos sentidos e do sistema nervoso, que se constituíram como adaptações durante os milhões de anos da evolução. Por conseguinte, são adequadas ao mundo “real” exatamente da mesma maneira e pela mesma razão que o casco do cavalo é adequado ao terreno da estepe, as barbatanas do peixe à água. É um antropomorfismo absurdo admitir que as formas humanas da experiência sejam as únicas possíveis, válidas para qualquer ser racional. Por outro lado, a concepção das formas da experiência como um aparelho adaptativo, comprovado em milhões de anos de luta pela existência, garante haver suficiente correspondência entre “aparência” e “realidade”.

Quando se diz que a experiência deve corresponder “de certa maneira” à “realidade”, não se exige que as categorias da experiência correspondam completamente ao universo real e ainda menos que o representem perfeitamente. Basta que uma seleção de estímulos seja usada como sinais indicadores. No que diz respeito às categorias da experiência, não é preciso refletir o nexo dos acontecimentos reais, mas deve-se ser isomórficas a estes.

As categorias da percepção e da experiência não precisam refletir o mundo “real”, mas devem ser isomórfica a ele em um grau tal que permita a orientação e por conseguinte a sobrevivência.

As formas populares de intuição e as categorias tais como espaço, tempo, matéria, causalidade, funcionam bastante bem no mundo de “dimensões médias” a que o animal humano está biologicamente adaptado. Aqui, a mecânica newtoniana e a física clássica, baseada nessas categorias visualizável, são perfeitamente satisfatórias. Malogram, porém, quando entramos em universos aos quais o organismo humano não está adaptado.

Uma característica essencial da ciência é que ela se desantropomorfiza progressivamente, isto é, elimina cada vez mais os traços devidos à experiência especificamente humana.

Uma das funções da ciência é expandir o observável. Convém acentuar que, ao contrário da concepção mecanicista, ao usar esta expressão não entramos em outro domínio metafísico. Ao contrário, as coisas que nos cercam na experiência de todos os dias, a célula vista no microscópio, as grandes moléculas observadas no microscópio eletrônico e as partículas elementares “vistas”, de modo ainda mais indireto e complicado, por seus rastros em uma câmara de Wilson, não são de grau diferente da realidade.

De qualquer modo porém, isto conduz à eliminação das limitações da experiência impostas pela organização psicofísica especificamente humana e, neste sentido, leva a desantropomorfização da imagem do mundo.

Um segundo aspecto que se pode considerar é o que se chama convergência da pesquisa. O constante da física tem sido freqüentemente considerado somente como meios convencionais para a descrição mais econômica da natureza. O progresso da pesquisa porém, revela que as constantes naturais, tais como o equivalente mecânico do calor ou a carga dos elétrons variam largamente na observação de observadores individuais. Em seguida, com o requinte das técnicas, o “verdadeiro” valor só é atingido assintoticamente, de modo que as determinações consecutivas alteram o valor estabelecido apenas em algarismos decimais progressivamente menores. Mas a questão é que certas constantes físicas representam certos aspectos da realidade, independentemente das tendências biológicas, teóricas ou culturais. Na verdade uma das mais importantes ocupações da ciência natural é verificar suas descobertas por meios mutuamente independentes.

O terceiro aspecto, também considerado o mais impressionante da progressiva desantropomorfização diz que o que é específico de nossa experiência humana é progressivamente eliminado. O que resta finalmente é somente um sistema de relações matemáticas.

Há algum tempo era considerada uma grave objeção contra a teoria da relatividade e a teoria quântica o fato de se tornarem cada vez mais “impossíveis de serem visualizadas”, isto é, não poderem suas construções ser representadas por modelos imagináveis.

O desenvolvimento da física depende naturalmente da constituição psicofísica de seus criadores.

A termodinâmica clássica e a estatística molecular são “linguagens” diferentes, usando diferentes abstrações e simbolismos matemáticos, mas os enunciados de uma teoria podem facilmente ser traduzidos na outra. Isto tem implicações muito oportunas. A termodinâmica e a teoria moderna da informação são evidentemente sistemas isomórficos similares, achando-se em progresso a elaboração de um completo “vocabulário” para a tradução.

Saber quais as características da realidade que apreendemos em nosso sistema teórico é um dado arbitrário em sentido epistemológico, sendo determinado por fatores biológicos, culturais e provavelmente lingüísticos.

Seria perfeitamente possível que seres racionais de outra estrutura escolhessem características e aspectos da realidade muito diferentes para construir sistemas teóricos, sistemas de matemática e física.

É possível que formas muito diferentes de ciência, de matemática, no sentido de sistemas hipotético-dedutivos, sejam possíveis para seres que não sofrem nossas coações biológicas e lingüísticas, “físicas” matemáticas muito mais adequadas do que a nossa para tratar desses aspectos da realidade.

O mesmo parece ser bem verdade quanto à lógica matemática. Até agora, esta ciência só parece cobrir um segmento relativamente pequeno daquilo que pode ser facilmente expresso em linguagem vernacular ou matemática. A lógica aristotélica cobre apenas o campo extremamente pequeno das relações sujeito-predicado. Provavelmente apenas um campo muito pequeno do raciocínio dedutivo possível é que foi axiomatizado, mesmo pelos esforços dos lógicos modernos.

Pode ser que a estrutura de nossa lógica seja essencialmente determinada pela estrutura de nosso sistema nervoso central. Este último é essencialmente um computador digital, visto que os neurônios operam de acordo com a lei fisiológica do tudo-ou-nada, em termos de decisões sim-ou-não. A isto corresponde o princípio heraclítico de nosso pensamento por opostos, nossa lógica bivalente sim-ou-não, a álgebra de Boole e o sistema binário de numeração, ao qual também pode ser reduzido ao sistema decimal.

Chegamos assim a uma concepção que pode ser chamada perspectivismo. Por oposição à tese “reducionista”, segundo a qual a teoria física é a única a que toda ciência possível e todos os aspectos da realidade devam ser finalmente reduzidos, podemos admitir uma opinião mais modesta. O sistema da física é obrigatório para qualquer ser racional no sentido explicado, isto é, por um processo de desantropomorfização esse sistema aproxima-se da representação de certos aspectos relacionais da realidade. É essencialmente um algoritmo simbólico conveniente para tal propósito. No entanto, a escolha dos simbolismos que aplicamos, e por conseguinte dos aspectos da realidade que representamos, depende de fatores biológicos e culturais.

Todo o nosso conhecimento, mesmo desantropomorfiszado, só reflete certos aspectos da realidade. Se o que foi dito é verdade, a realidade é aquilo que Nicolau de Cusa chamava coincidentia oppositorum. O pensamento discursivo representa sempre somente um aspecto da realidade última, chamada Deus na terminologia de Cusa. Nunca pode esgotar sua infinita multiplicidade. Por conseguinte, toda afirmação é válida somente de um certo ponto de vista, tem apenas validade relativa, devendo ser suplementada por proposições antitéticas partidas de pontos de vistas opostos.

Portanto, as categorias de nossa experiência e de nosso pensamento parecem ser determinadas por fatores biológicos e culturais. Em segundo lugar, esta limitação humana é rasgada por um processo de desantropomorfização progressiva de nossa imagem do mundo. Em terceiro lugar, mesmo desantropomorfizado, o conhecimento só reflete certos aspectos da realidade. Contudo, em quarto lugar, ex omnibus partibus relucet totum, usando ainda uma vez as palavras de Cusa: Cada um desses aspectos possui a verdade, embora somente relativa. Isto, ao que parece, indica as limitações e ao mesmo tempo a dignidade do conhecimento humano.

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